Por: Aline
Oliveira
O amor que não permite à tristeza tomar conta da trajetória de uma esposa, mãe
e avó à moda antiga
É domingo,
dia de almoço em família. As panelas estão no fogo e o cheiro de comida toma
conta da cozinha inteira. É quase meio-dia. Na mesa, sobre a toalha, alguns
vestígios do que foi o café-da-manhã. Os filhos e netos se acomodam pela sala,
cozinha e quintal da casa. O silenciar da panela de pressão indica que o feijão
está cozido, ao lado do macarrão que aguarda o molho. A água do arroz borbulha
sobre o fogão em meio ao calor, presente também lá fora num dia de primavera
que mais parece verão. Estão todos ali.
Presença que se faz da ausência
Uma
família unida e reunida. Quem está ausente em presença física, permanece vivo,
após duas décadas, na memória de quem amou e por quem é amado.
A casa
abriga pelo menos quarenta anos de história, situada numa cidade que se
emancipou há apenas quarenta e sete. No quintal, Branquinho e Rex saúdam com
latidos quem acaba de chegar. O primeiro faz jus ao nome, com os pelos que
lembram algodão, parece ser bastante dócil e logo foge para a rua na primeira
chance que tem. Rex tem os pelos e olhos negros, calado, nem se incomoda com
visitas. Aproxima-se, mas volta em seguida para seu cantinho perto da porta. Na
sala, quadros enfeitam as paredes. Alguns são de motivos religiosos. Retratam a
fé de uma família essencialmente católica. Cenário de tristezas e angústias,
mas também de muitos risos e gestos de amor, é ali que mora dona Marialva Dias
dos Santos, 68 anos de idade.
Por trás
dos óculos, seus olhos são doces e carregam a ternura típica de quem é avó. Têm
o tom escuro, que contrasta com a pele clara, marcada pelo tempo. Claros também
são os cabelos, já grisalhos e leves, que emolduram seu rosto. A baixa estatura
esconde a grandeza de uma mulher com poucos conhecimentos acadêmicos, sem
estudo ou diplomas, mas mestre em ensinar o amor. Quem a vê com a aliança na
mão esquerda, logo percebe o laço de união entre ela e seu marido. Talvez não
suspeite que ele já não está mais ali, pelo menos em presença física, pois das
lembranças e do dia a dia da família, o patriarca nunca saiu.
A gente
nunca esquece, eu nunca esqueço. Tem noite que eu fico pensando, pensando, tudo
o que passou. É assim como se fosse um cinema, sabe? Tudo o que passou, às
vezes vem tudo à tona. E a gente fica né, perde até o sono.
Ângelo
faleceu vítima de um acidente vascular cerebral, deixando esposa e filhos. Mas
sua morte não roubou a vida de quem ficou, pelo contrário, a família Livino dos
Santos está completa, pois desfruta da plenitude de um amor que não morre.
Marido e mulher
Foi
um casamento simples, só teve um almoço, aí pronto. Eu não vesti de noiva, mas
era um traje branco. Não casei de noiva como era o sonho de toda moça casar,
porque não tinha condição de comprar um vestido, fazer uma festa. Ele também
vivia do trabalho, sem ninguém pra ajudar. Porque o pessoal dele morava no
interior e ele, em Salvador. Só sei que a gente casou, viveu bem, graças a
Deus.
A senhora
começou a namorar o senhor Ângelo com quantos anos, pergunto enquanto ela limpa
os óculos. Olha, eu não sei bem a minha idade, mas reza meu documento,
reza que eu tinha 23 anos. Reza, quer dizer, é modo de falar né; conta, né. Mas
eu não sei direito, porque naquela época a gente nascia pelo interior da Bahia,
pra lá, Nordeste, pra aqueles cantos de lá, e os pais não registravam.
Os dois se
conheceram na Bahia, terra natal. Ao se encontrarem por acaso no prédio em que
trabalhavam, foi um passo para o namoro. Marialva era babá. Cuidava de crianças
terríveis, muito bagunceiras. Ângelo, cerca de onze anos mais velho, trabalhava
no almoxarifado do edifício. Depois de um desentendimento com a patroa,
Marialva foi trabalhar com uma enfermeira casada com um estudante de
veterinária. O casal tinha uma filhinha e morava na cidade de Cruz das Almas,
perto de Salvador. Trabalhou um tempo na casa dessa família e passou a se
corresponder por cartas com o namorado, que estava em Vitória da Conquista.
Quando ele
conseguiu arranjar a casa e os móveis, escreveu para que dessem entrada nos
papéis do casamento. Então ela voltou para a cidade onde se viram pela
primeira vez. Casaram-se no civil. Antes sozinhos, passariam a ter um a
companhia do outro a partir de então. Com essa cumplicidade, puderam dar o
afeto que não receberam na infância. Luzia, Silvana, Manoel, Arlete e Nielma,
seus cinco filhos. Cinco não. Descubro que foram, na verdade, oito. Três
meninas que não sobreviveram devido dificuldades e complicações no parto.
Vinda da
Bahia para São Paulo em 1964, já casada, passou a morar com o marido em Osasco
por algum tempo. Nessa época oficializaram a união no religioso. Depois
compraram um terreno em Francisco Morato, onde construíram uma casa de pau a
pique. A cidade que antes era uma vila cresceu. E as dificuldades não
diminuíram. Foi nessa época que perdeu as três crianças. Perdi não,
Deus levou... A primeira com 6 dias para 6 meses, uma outra que nasceu de
8 meses,; e depois que eu mudei pra aqui eu tive mais uma outra criança, era
outra menina.
Acostumada
ao clima quente do nordeste, Marialva custou a se adaptar na cidade da
garoa, como falam, né. Tinha saúde, mas com o tempo, foi ficando
doente. Meu marido também; pegou bronquite, ficava ruim de gripe. E eu
reumatismo, doía demais, demais. Perceberam juntos que não apenas isso
era diferente na nova cidade, mas o clima que rege as relações formais também.
O marido trabalhava tomando conta de um almoxarifado, cuidando de tudo que
entrava e saía, inclusive pagamento de outros funcionários. Em São Paulo, não
conseguiu emprego por não ter curso de datilografia. Começou a trabalhar como
servente de pedreiro para pagar o aluguel e evitar que passassem fome.
Tempos
depois, arranjou emprego numa metalúrgica, que logo mudou de bairro e talvez,
também de dono, devolvendo a Ângelo a condição de desempregado. Sofremos
bastante; com o tempo ele ficou com a pressão alta e sofreu derrame. Ficou
muito ruim. Superou. Aí com um ano e dois meses que ele tinha superado, quer
dizer, ele já andava só para ir no médico, comprar alguma coisa, deu outro
derrame, aí ele não resistiu.
Uma tarde, aquela tarde
Ele estava
no serviço, no Ipiranga quando sentiu um mal-estar e foi levado ao hospital. O
médico, após receitar um remédio, liberou Ângelo, que voltou para casa ainda
debilitado. Com pouco equilíbrio e dificuldade para enxergar, foi difícil até
para passar na catraca da estação de trem. No momento em que Marialva descreve a
cena, a canção que tocava na sala e ouvíamos da cozinha, de repente parou. Com
uma tristeza na voz, ela recorda que já em casa, uma dor de cabeça muito forte
tomou o marido, que dava sinais de piora.
Depois eu
levei no médico na Santa Casa. O médico aplicou uma injeção e teve de internar,
porque ele ficou muito mal; arrumaram uma ambulância e levaram pra Franco da
Rocha. Começou a piorar, vomitar. Numa sala, eu ouvia o barulho dele. Depois,
ele saiu desacordado. Foi internado, com os aparelhos. Fui na visita, no outro
dia
- É dona
Maria, seu Zé só com um milagre pra ele escapar... (Disse uma
moça que estava no hospital).
Marialva
foi embora e passou o restante da tarde em casa. No dia seguinte, na madrugada,
logo cedo, ligaram do hospital informando que ele tinha falecido. Foi
muito difícil. Fiquei em estado de choque, passando mal. Me levaram na Santa
Casa de Jundiaí, depois me deram uma injeção, eu dormi. Quando acordei, já
tinha dado entrada na papelada do sepultamento, depois foi o sepultamento, no
mesmo dia à tarde.
Junto aos
cinco filhos, Marialva sofreu muito, uma vez que o marido sempre foi sua
companhia. Vieram morar numa cidade sem nenhum parente por perto, e o apoio que
tinham era um a presença do outro. Os filhos, ainda jovens, tiveram de aprender
cedo as responsabilidades do trabalho para ajudar a mãe, além de dividir as
tarefas da casa. O que ajudou foi a religião e a educação que eles
tiveram, né. Do pai, minha mesmo. A fé teve e tem um espaço
significativo no dia a dia da família. Diante da concretude da morte,
contribuiu para dar voz ao pulsar da vida de quem ali ficava e de quem na
memória ficou.
Não
sou a pessoa ideal pra falar porque são meus filhos, mas a vizinhança tinha
inveja deles, eles eram obedientes, andavam sempre na igreja. Não importava que
tinha pouco recurso, mas andavam todos limpinhos. Sempre soube se proteger. Eu
também fiquei viúva, não procurei mais ninguém, me dediquei a eles.
Outros dias, novos dias
- Cadê minha cozinheira, que
me deixou na mão?
Levanta-se,
olha as panelas que deixou no fogão aos cuidados de uma das filhas enquanto
conversava comigo. Ao fundo, uma música calma. Eu gosto muito de música
religiosa. A trilha que embala os afazeres diários é quase sempre
nesse tom. Menos atraída pela televisão, Marialva prefere o rádio, que
lhe acompanha em vez de lhe deixar presa durante o passar do dia. Às
vezes eu canto junto, conforme as músicas mexem muito com a gente. Tem música
que alegra a gente, eu vou fazer as coisas de casa, eu vou escutando, quando
percebo, fiz tudo e nem vi que passou a hora. Posso ir lá fora, não
estando muito longe, eu escuto.
Entre as
vozes prediletas, estão Adriana Arydes e o Padre Marcelo Rossi. Todos os dias,
logo quando acorda, assiste pela televisão ao Momento de Fé com a sua bênção.
Dele tem o livro e também o CD. E ainda se vier noites traiçoeiras, se
a cruz pesada for, Cristo estará contigo. O mundo pode até, lhe fazer chorar, mas
Deus lhe quer sorrindo.
Marialva
leva a vida com alegria e preenchida com as memórias do passado, constrói seu
presente. Lembro de forma alegre, tristeza só por causa dos problemas
de saúde, dos acontecimentos. Até hoje eu sonho com ele. Sonho com ele com a
roupa que usava pra trabalhar; às vezes, com outra roupa. Ajudando em casa...
Às vezes vejo o rosto dele, outras não. Passa tudo, a gente passar
por todas essas coisas, não e fácil. Mas o que agente tem que passar outra
pessoa não passa pela gente.
Como numa
trama de romance, as cenas passeiam pela sua memória que, ao longo de nossas
conversas, não resgata com precisão as datas e o tempo decorrido de um momento
a outro; mas descreve com detalhes aquilo que marcou de forma afetiva sua
trajetória. Quando me despeço, pede desculpas por talvez não ter respondido a
todas as perguntas, pois não teve estudo nem oportunidade. Não sei se
lhe ajudei. Agora o almoço está quase pronto, estão todos ali. Menos
Branquinho, que, esperto, fugiu de novo pela brecha do portão.
***Perfil Jornalístico escrito em 2012 para a disciplina de Conceitos e Gêneros
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